A morte de azul (conto)
A história que mais me impressionou das tantas que ouvi de minha mãe foi a seguinte:
Quando ele tinha uns dez anos, viajou com os pais para uma praia do litoral sul, fato raríssimo já que o pai dele detestava viagens e praias. Era um dia chuvoso, daqueles em que toda a paisagem cobre-se de matizes de cinzas, veladuras e foggy. Ele caminhava animado, o tempo não o incomodava, olhando para a areia em busca de “pequenos tesouros”, fugindo de vez em quando das marolas frias que avançavam em sua direção, mergulhado em seu mundo tão particular e único. Olhou para trás, o grupo de familiares já pequeninos na distância, sentiu uma ponta de insegurança apesar de tudo. Continuou seguindo à margem d’água, aproximando-se das rochas no pontal da enseada. Tomado por aquele espírito desbravador e aventureiro, tão típico de crianças desta idade, olhou para o alto, grandes pedras empilhadas, não pareceu uma escalada impossível. Ficou imaginando como Deus ou uma força maior conseguiu empilhar aquelas pedras gigantescas de forma tão calculada, deveria ser um trabalho que exigia força descomunal, pensou. Começou a subir, tomando o devido cuidado ao pisar, pois a superfície era úmida e um pouco escorregadia. Á medida que ganhava altura, sentia o vento mais forte e a maresia grudava em seu corpo feito suor. Quando estava quase no topo, esticou o pescoço para descobrir o outro lado. A linha do horizonte revelava-se tênue pela neblina e as ondas rebentavam com violência. Vasculhou ao redor avaliando se deveria avançar ou não quando algo lhe chamou a atenção. Em meio ao vapor intenso e rochas escarpadas, avistou uma mancha azul, algo flamejante que aguçou sua curiosidade. Deu mais uma olhada para trás tentando avistar seu povo, mas tudo que via eram manchinhas borradas. Pensou na reprimenda dos pais, mas por ingênua inconseqüência ou uma curiosidade visceral, decidiu avançar. Com mais atenção, pisava no alto das pedras e segurava-se nas paredes das grandes como apoio. À medida que avançava seus passos, assistia os pequenos seres rastejantes e outros de muitas patas esconderem rapidamente por entre as fendas e buracos úmidos nas rochas. Era como se ele fosse um gigante assustador invadindo a terra dos pequeninos apavorados de medo. Mas essa aventura ficaria para outra hora. Continuou sua escalada sem olhar para frente quando aquele ponto azul se definiu num estalo. De repente seu coração disparou e sua respiração quase cessou de tanto susto; suava muito apesar da friagem marítima. As ondas pareciam rugidos de animais ferozes e o vento uivava agitado. O corpo de uma linda jovem nos seus vinte poucos anos, revelava-se incômodo e desconfortável sobre aquelas pedras. Ele não tinha certeza se estava morta, mas pareceu-lhe impossível estar viva. Tremendo muito e abafando um gemido de angustia, ele superou o choque e avançou lentamente em sua direção. Com cabelos ruivos desgrenhados e sujos de areia, sua pele era branca como cera coberta com um longo vestido turquesa encharcado. Uma faixa de tecido, provavelmente o cinto de seu vestido, agitava-se compulsivamente ao vento como se pedisse socorro para aquela alma, em vão. Suas pernas à mostra tinham hematomas bem como na face direita e seus olhos azuis acinzentados olhavam para o céu inerte. Ele nunca tinha visto alguém morto e aquela cena hipnotizou-o por instantes infindos. Era como se a morte lhe fosse algo familiar, as cores daquele cenário habitassem sua alma havia muito, o grito inaudível daquela boca entreaberta, soasse forte e marcante, petrificando seu corpo de criança. Não se sabe quanto tempo o corpo estava ali, de onde veio e porque, ele apenas ficou ali parado, olhando fixamente seus olhos, mas algo o despertou daquele transe. Um chamado feminino familiar e distante fez querer sair dali rapidamente. Num salto brusco para a pedra próxima resvalou a canela e abriu imediatamente uma ferida amarela e depois vermelha. Abafou o grito de dor e continuou a escalada de volta sem olhar para trás, quando minutos depois alcançou a areia fofa quase sem ar.
Uma hora depois, metade da população local estava naquela praia.
Alfredo Vieira